sábado, 13 de outubro de 2018

JOÃO RAMALHO: REFLEXÕES SOBRE SUAS ORIGENS


Um dos personagens históricos mais antigos e misteriosos da História de São Paulo, e do Brasil, foi João Ramalho. Não seria exagero dizer que este homem foi a “ponte” entre o velho mundo e o novo mundo, cuja existência não só viabilizou a “integração” entre estes dois mundos, mas também, a simbolizou, visto seus filhos, todos mestiços. Sua descendência é enorme, tornando-se um ícone da formação e da identidade do povo brasileiro.

Mas, quem foi João Ramalho? Quais são as suas origens? Foi um explorador? Um condenado degredado? Um nobre? Um cristão-novo? Quem foi sua esposa? Quantos anos realmente viveu? Quais realmente são os seus filhos?

Seria, de minha parte, enorme prepotência e irresponsabilidade anunciar respostas para tais questões. O meu intuito, aqui, é apresentar uma breve revisão bibliográfica dos estudos e analisar o que temos até então. João Ramalho, já foi objeto de estudo de genealogistas brilhantes, mas, dada a escassez de documentos e fontes originais de seu período, torna-se praticamente impossível novas descobertas.
Primeiramente, para situar os leitores que porventura que não conhecem a história de João Ramalho, faço aqui, um breve resumo sobre sua vida, embasado na obra original de Silva Leme, a Genealogia Paulistana: era um português, de Vouzela, Viseu, filho de João Velho Maldonado e Catarina Afonso de Balbode, casado, uma primeira vez, com Catarina Fernandes de Vacas; deixou-a, em circunstâncias desconhecidas, rumando para o Brasil, onde não se sabe exatamente o período. Em 1532, quando Martim Afonso de Sousa chegou em São Vicente, encontrou-o, vivendo com uma filha do cacique Tibiriçá, onde João Ramalho serviu de interprete. Já tinha filhos mestiços e já estava integrado com os índios. Por volta de 1550, fundou a povoação da Borda do Campo, foi Alcaíde-Mór de Piratininga e chefiou uma expedição em 1562, contra os índios Tupiniquins. De acordo com uma cópia de seu testamento, que pertencia ao velho José Bonifácio, cujo original seria de 1580, menciona-se que sua vinda para o Brasil seria a 90 anos (cogita-se erro de interpretação do algarismo, onde seria 70 anos), tendo os seguintes filhos: André Ramalho, Joana Ramalho, Margarida Ramalho, Vitório Ramalho, Antônio de Macedo, Marcos Ramalho, Jordão (ou João) Ramalho e Antônia Quaresma.

Há alguns testemunhos também, de grande valia e importância. Faço aqui um breve resumo destas cartas (fragmentos), daquilo que é essencial:

- Há uma carta de Pero Corrêa, para o Pe. Balthazar Nunes, de 1551, relatando que um homem, que estava há uns 40 anos no Brasil, ameaçou um padre, cujo homem “já tinha bisnetos” com índias e era excomungado;

- Nóbrega, em carta de 31 de Agosto de 1553, também relatou sobre João Ramalho, em especial, do interesse do mesmo em se casar com sua esposa, “índia, filha dos maiores e mais principais desta terra”. Ele cita que o mesmo era parente do Pe. Paiva; ESTA INFORMAÇÃO, DE PARENTESCO, É DE GRANDE IMPORTÂNCIA.

- Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola, em 1554:
De facto, alguns cristãos filhos de pai português e mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa povoação de portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a terra a obra que procuramos edificar com a ajuda de Deus pois exortam repetida e criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e frechas como os índios, e a não fiarem em nós que fomos enviados aqui por causa de nossa maldade.  Com esses e semelhantes coisas conseguem que uns não creiam na pregação da palavra de Deus e que outra que parecia já termos encerados no redil de Cristo voltem aos antigos costumes e se apartem de nós para viverem mais livremente. (...) Este passou quase 50 anos nesta região, junto com uma concubina brasílica, e gerou muitos filhos: a salva-los dedicaram os irmãos de nossa Companhia todos os cuidados e canseiras.... Notando porém que nenhum fruto se obtinha dele, mas que ao contrário continuavam o maior escândalo, tanto o pai como os filhos, que estão unidos com duas irmãs e duas filhas do mesmo pai- começaram os Irmãos a exercer sobre eles algum rigor e violência, sobretudo separando-os da comunhão da Igreja. Mas eles, que deveriam ter mudado com esta medida, estão a tal ponto depravados, que nos têm o maior ódio e procuram prejudicar-nos de todos os modos, ameaçando-nos até de morte e esforçando-se para inutilizar a doutrina em que educamos e instruímos os índios por concitar ódio deles contra nós. E assim, se não se extinguir completamente esta peste tão perniciosa, não só não se poderá seguir na conversão dos infiéis mas terá de debilitar-se e diminuir cada vez mais.”
Este relato, é, talvez, o mais incisivo, em retratar o conflito de João Ramalho e sua prole com a Igreja; inclusive, demonstra o grau de libertinagem do clã de João Ramalho.

- Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola, em 1555:
“Os cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica de que fiz menção no último quadrimestre, estão tão duros e cegos que crescem estão cada vez mais o ódio duro que nos têm. Não o podendo exercer contra nós por obras, aplicam-no para a ruína dos índios de maneira que já destruíram completamente uma aldeia em que morava o Padre Francisco Pires e o Padre Vicente Rodrigues, incitando os índios a matar os contrários e a comer sua carne (...)”.

- Anchieta, em 1560, relata o falecimento de uma velha, que havia sido manceba de um português quase quarenta anos e ainda gerando muitos filhos;

Nestes relatos, podemos deduzir que João Ramalho teria vindo para o Brasil pelos idos de 1510; a informação de seu testamento, em 1580, e o relato de Pedro Corrêa, de 1551, corroboram nesse entendimento, cujas outras fontes, não são muito divergentes. Há também, uma forte relação de oposição de João Ramalho com os Jesuítas, muito provavelmente, diante da impossibilidade de seu casamento “formal” e seu “estilo de vida” divergente das normas sociais da época, além de, certamente, temor de perca de autoridade e poder. João Ramalho era uma autoridade de grande poder na recém-criada Borda do Campo, e, certamente, não aceitava dividir seu poder político no local.

Após a década de 1560, tornam-se escassas as citações a João Ramalho. Posteriormente, o que temos, é a menção de Silva Leme sobre a cópia de seu testamento, cuja posse deste manuscrito se encontrava com o “velho José Bonifácio”.

JÁ TEMOS UM BREVE ESBOÇO DA VIDA DE JOÃO RAMALHO NO BRASIL; MAIS QUAIS SERIAM AS SUAS ORIGENS EM PORTUGAL?

Pelas informações da cópia de seu testamento, temos:
- João Ramalho seria de Vouzela, Viseu, e, possivelmente, seria nascido em aproximados 1490, visto que, por volta de 1510, teria vindo ao Brasil.
- Seria filho de João Velho Maldonado e Catarina AFONSO (de Balbode), e casado, uma primeira vez, com Catarina Fernandes de Vacas, antes de vir para o Brasil.
- Além destas informações, sabemos que era parente do Pe. Paiva (Manuel de PAIVA), jesuíta em São Paulo. Seriam primos? Por qual via e sobrenomes existiria o parentesco?
- É interessante, verificar que dentre sua prole, há dois filhos com sobrenomes Quaresma e Macedo.
- Um fato “intrigante”, na vida de João Ramalho, é a assinatura deste. Bogaciovas, em seu livro (vide referências), cita que a mesma continha uma letra hebraica, o Kaf, que consiste em um “C” invertido. No Google, é possível encontrar a assinatura deste. Diversos genealogistas discutiram a questão, mas não há consenso. Mas, como o próprio autor indaga, como alguém, em tempos de inquisição, assinaria uma letra hebraica em seu nome sem o ser? A sua relação conflituosa com os Padres em São Paulo também podem indicar este entendimento. Muitos, poderiam deduzir que, dado o seu parentesco com o Pe. Paiva, seria oportuno descartar suas possíveis origens cristãs-novas. Isto é um considerável equívoco, visto que muitos padres e religiosos tinham ascendência cristã-nova próxima. Tais questões são amplamente discutidas por diversos autores.
- Pela assinatura, deduz-se que João Ramalho era alfabetizado.
As razões pelas quais João Ramalho teria vindo ao Brasil, abandonando a sua esposa, são misteriosas. É interessante sua origem no interior de Portugal, o que pressupõe que o mesmo não fora criado no litoral, em contato próximo com as naus portuguesas (suposição minha).

No intuito de investigar algum fato, no sítio da Torre do Tombo, fiz buscas, com os termos “Vouzela” combinado, de forma intercalada, com “Maldonado”, “Ramalho”, “Afonso” e “Paiva”. Os resultados encontrados na localidade de Vouzela, que me chamaram a atenção, foram:

- 1476: Perdão concedido por Afonso V a João Afonso, morador em Vouzela, quanto a pena de degredo, em razão de querela e malefícios causados a Aires Pires, ferreiro;
- 1487: Privilégio a um “João Ramalho” (não vi informação de localidade, e não há detalhes);
- 1490: Nomeação de Gonçalo Annes Ramalho como tabelião em Gestaço, e “perdão” (próximo a Lamego);
- 1496: Ofício de “enqueredor” concedido a Álvaro de Paiva, escudeiro, morador em Vouzela. Em outro documento, do mesmo ano, foi dada confirmação do ofício de Tabelião do Público e Judicial, no julgado de Lafões;
- 1496: Lopo Afonso, morador de Vouzela, recebeu confirmação do ofício de tabelião do público e judicial “nesse concelho”;
- 1497: Estevão de Paiva, escudeiro, morador de Vouzela, foi nomeado tabelião do público e judicial naquela vila e concelho, substituindo Pero Annes, que faleceu;
- 1498: Maria Afonso, natural de Vouzela, moradora nas Eiras, recebeu carta de perdão, visto que fora presa na cadeia e prisão da vila de Lafões, em razão de acusações de que era manceba de um clérigo de missa e abade de Santa Cruz, bispado de Viseu, chamado Balthazar de Siqueira;
- 1499: Instrumento assinado por Álvaro de Paiva, tabelião, apresentando Estevão de Paiva, escudeiro, morador em Vouzela, para lhe ser dado o cargo de distribuidor dos tabeliães do auto judicial no julgado de Lafões;
- 1499: Lopo Afonso, escudeiro do Rei, morador em Vouzela, tem mercê do ofício de tabelião do público e judicial no concelho de Lafões, “assim como foi Rodrigo Annes, que o dito ofício tinha e dele foi privado por Brás Afonso, ouvidor nesses concelhos, porque Rodrigo Annes havia 5 ou 6 anos que não servia;
- 1500: Álvaro de Paiva, escudeiro e morador de Vouzela, é nomeado por três anos escrivão da câmara do concelho;
- 1503: Eitor (sic) Afonso, morador em Vouzela, obtêm mercê do ofício de escrivão das sisas do Concelho de Mafães;
- 1512: Henrique Afonso, morador em Vouzela, recebeu privilégio de Espingardeiro em forma, por vaga de Antão Pires, ferreiro;
- 1513: Heitor Afonso, morador em Vouzela, do concelho de Lafões, nomeado escrivão dos direitos reais, em virtude de Estevão de Paiva, anterior titular do cargo, o não servir por muitos anos, porque fora para a Ilha da Madeira;
- 1517: Pedro Afonso, morador na vila de Vouzela, do concelho de Lafões, é nomeado porteiro das sisas deste concelho;

É interessante observar a existência de alguns “Afonsos” e “Paivas” em cargos de tabeliães e escrivães, em Vouzela, localidade de origem de João Ramalho, e, possivelmente, relacionada também ao Pe. Manuel de Paiva. Certamente, os que estão citados acima, são parentes de João Ramalho e/ou do Pe. Paiva. Não sabemos se estes “Afonsos” são apenas sobrenomes patronímicos ou possuem relações entre si.

Tais informações, apresentam apenas breves indícios sobre a origem de João Ramalho em Vouzela. Estas informações de Vouzela, dispostas cronologicamente, tem por objetivo incentivar pesquisadores, em especial, aqueles com acesso a Torre do Tombo e conhecimentos de paleografia, para tentar decifrar uma possível teia de parentescos entre esses Paivas e Afonsos, de onde pode surgir algum liame e pista sobre João Ramalho e o Pe. Paiva.


FONTES:

Genealogia Paulistana. Luiz Gonzaga da Silva Leme (1852-1919). Vol. IX – Pág. 65 a 107. Adenda Geral (Volumes 1 e 2). Disponível em: http://www.arvore.net.br/Paulistana/Adenda_1.htm


Instituto Camões – Língua – 4 – Dicionário de Tradutores e Intérpretes de Língua Portuguesa – João Ramalho. Artigo em: http://cvc.instituto-camoes.pt/olingua/04/lingua06.html


Bartira e João Ramalho nas Cartas Jesuíticas. Projeto Compartilhar. Cartas publicadas in: Leite, Serafim, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, Ed 4º Centenário, Tipografia Atlântica, Coimbra, 1956. Disponível em: http://www.projetocompartilhar.org/bartiraejoaoramalho.htm


Bogaciovas, Marcelo Meira Amaral. Cristãos-Novos em São Paulo (Séculos XVI - XIX): assimilação e nobilitação – São Paulo: ASBRAP, 2015. 480 p. ISBN 978-85-918719-2-6.


Torre do Tombo (PT). Link para pesquisa: http://antt.dglab.gov.pt/pesquisar-na-torre-do-tombo/pesquisar-no-digitarq/

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