Um dos
personagens históricos mais antigos e misteriosos da História de São Paulo, e
do Brasil, foi João Ramalho. Não seria exagero dizer que este homem foi a
“ponte” entre o velho mundo e o novo mundo, cuja existência não só viabilizou a
“integração” entre estes dois mundos, mas também, a simbolizou, visto seus
filhos, todos mestiços. Sua descendência é enorme, tornando-se um ícone da
formação e da identidade do povo brasileiro.
Mas,
quem foi João Ramalho? Quais são as suas origens? Foi um explorador? Um
condenado degredado? Um nobre? Um cristão-novo? Quem foi sua esposa? Quantos
anos realmente viveu? Quais realmente são os seus filhos?
Seria,
de minha parte, enorme prepotência e irresponsabilidade anunciar respostas para
tais questões. O meu intuito, aqui, é apresentar uma breve revisão
bibliográfica dos estudos e analisar o que temos até então. João Ramalho, já
foi objeto de estudo de genealogistas brilhantes, mas, dada a escassez de
documentos e fontes originais de seu período, torna-se praticamente impossível
novas descobertas.
Primeiramente,
para situar os leitores que porventura que não conhecem a história de João
Ramalho, faço aqui, um breve resumo sobre sua vida, embasado na obra original
de Silva Leme, a Genealogia Paulistana: era um português, de Vouzela, Viseu,
filho de João Velho Maldonado e Catarina Afonso de Balbode, casado, uma
primeira vez, com Catarina Fernandes de Vacas; deixou-a, em circunstâncias
desconhecidas, rumando para o Brasil, onde não se sabe exatamente o período. Em
1532, quando Martim Afonso de Sousa chegou em São Vicente, encontrou-o, vivendo
com uma filha do cacique Tibiriçá, onde João Ramalho serviu de interprete. Já
tinha filhos mestiços e já estava integrado com os índios. Por volta de 1550,
fundou a povoação da Borda do Campo, foi Alcaíde-Mór de Piratininga e chefiou
uma expedição em 1562, contra os índios Tupiniquins. De acordo com uma cópia de
seu testamento, que pertencia ao velho José Bonifácio, cujo original seria de
1580, menciona-se que sua vinda para o Brasil seria a 90 anos (cogita-se erro
de interpretação do algarismo, onde seria 70 anos), tendo os seguintes filhos: André Ramalho, Joana Ramalho, Margarida
Ramalho, Vitório Ramalho, Antônio de Macedo, Marcos Ramalho, Jordão (ou João)
Ramalho e Antônia Quaresma.
Há
alguns testemunhos também, de grande valia e importância. Faço aqui um breve
resumo destas cartas (fragmentos), daquilo que é essencial:
- Há uma
carta de Pero Corrêa, para o Pe. Balthazar Nunes, de 1551, relatando que um homem, que estava há uns 40 anos no Brasil, ameaçou um padre, cujo homem “já tinha
bisnetos” com índias e era excomungado;
-
Nóbrega, em carta de 31 de Agosto de 1553, também relatou sobre João Ramalho,
em especial, do interesse do mesmo em se casar com sua esposa, “índia, filha
dos maiores e mais principais desta terra”. Ele cita que o mesmo era parente do Pe. Paiva; ESTA
INFORMAÇÃO, DE PARENTESCO, É DE GRANDE IMPORTÂNCIA.
-
Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola, em 1554:
“De facto, alguns cristãos filhos de pai português e
mãe brasílica, que estão apartados de nós 9 milhas numa povoação de
portugueses, não cessam nunca de esforçar-se juntamente com o pai por lançar a
terra a obra que procuramos edificar com a ajuda de Deus pois exortam repetida
e criminosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que
usam arco e frechas como os índios, e a não fiarem em nós que fomos
enviados aqui por causa de nossa maldade. Com esses e semelhantes coisas
conseguem que uns não creiam na pregação da palavra de Deus e que outra
que parecia já termos encerados no redil de Cristo voltem aos antigos costumes
e se apartem de nós para viverem mais livremente. (...) Este passou quase 50 anos nesta região, junto com uma concubina brasílica, e gerou muitos filhos: a salva-los
dedicaram os irmãos de nossa Companhia todos os cuidados e canseiras....
Notando porém que nenhum fruto se obtinha dele, mas que ao contrário
continuavam o maior escândalo, tanto o pai como os filhos, que estão unidos com
duas irmãs e duas filhas do mesmo pai- começaram os Irmãos a exercer sobre eles
algum rigor e violência, sobretudo separando-os da comunhão da Igreja. Mas eles, que deveriam ter mudado com
esta medida, estão a tal ponto
depravados, que nos têm o maior ódio e procuram prejudicar-nos de todos os
modos, ameaçando-nos até de morte e esforçando-se para inutilizar a doutrina em
que educamos e instruímos os índios por concitar ódio deles contra nós. E
assim, se não se extinguir completamente esta peste tão perniciosa, não só não
se poderá seguir na conversão dos infiéis mas terá de debilitar-se e diminuir
cada vez mais.”
Este
relato, é, talvez, o mais incisivo, em retratar o conflito de João Ramalho e
sua prole com a Igreja; inclusive, demonstra o grau de libertinagem do clã de
João Ramalho.
-
Anchieta ao Pe. Inácio de Loyola, em
1555:
“Os cristãos nascidos de
pai português e mãe brasílica de que fiz menção no último quadrimestre, estão
tão duros e cegos que crescem estão cada vez mais o ódio duro que nos têm.
Não o podendo exercer contra nós por obras, aplicam-no para a ruína dos índios
de maneira que já destruíram completamente uma aldeia em que morava o Padre
Francisco Pires e o Padre Vicente Rodrigues, incitando os índios a matar os
contrários e a comer sua carne (...)”.
- Anchieta,
em 1560, relata o falecimento de uma
velha, que havia sido manceba de um
português quase quarenta anos e ainda gerando muitos filhos;
Nestes
relatos, podemos deduzir que João Ramalho teria vindo para o Brasil pelos idos
de 1510; a informação de seu testamento, em 1580, e o relato de Pedro Corrêa,
de 1551, corroboram nesse entendimento, cujas outras fontes, não são muito
divergentes. Há também, uma forte relação de oposição de João Ramalho com os
Jesuítas, muito provavelmente, diante da impossibilidade de seu casamento
“formal” e seu “estilo de vida” divergente das normas sociais da época, além
de, certamente, temor de perca de autoridade e poder. João Ramalho era uma
autoridade de grande poder na recém-criada Borda do Campo, e, certamente, não
aceitava dividir seu poder político no local.
Após a
década de 1560, tornam-se escassas as citações a João Ramalho. Posteriormente,
o que temos, é a menção de Silva Leme sobre a cópia de seu testamento, cuja
posse deste manuscrito se encontrava com o “velho José Bonifácio”.
JÁ TEMOS
UM BREVE ESBOÇO DA VIDA DE JOÃO RAMALHO NO BRASIL; MAIS QUAIS SERIAM AS SUAS
ORIGENS EM PORTUGAL?
Pelas
informações da cópia de seu testamento, temos:
- João
Ramalho seria de Vouzela, Viseu, e,
possivelmente, seria nascido em aproximados 1490, visto que, por volta de 1510,
teria vindo ao Brasil.
- Seria filho de João Velho Maldonado e Catarina AFONSO
(de Balbode), e casado, uma primeira vez, com Catarina Fernandes de Vacas,
antes de vir para o Brasil.
- Além
destas informações, sabemos que era
parente do Pe. Paiva (Manuel de PAIVA), jesuíta em São Paulo. Seriam
primos? Por qual via e sobrenomes existiria o parentesco?
- É
interessante, verificar que dentre sua
prole, há dois filhos com sobrenomes Quaresma e Macedo.
- Um
fato “intrigante”, na vida de João Ramalho, é a assinatura deste. Bogaciovas, em seu livro (vide referências), cita
que a mesma continha uma letra hebraica,
o Kaf,
que consiste em um “C” invertido. No Google, é possível encontrar a assinatura
deste. Diversos genealogistas discutiram a questão, mas não há consenso. Mas,
como o próprio autor indaga, como alguém, em tempos de inquisição, assinaria
uma letra hebraica em seu nome sem o ser? A sua relação conflituosa com os
Padres em São Paulo também podem indicar este entendimento. Muitos, poderiam
deduzir que, dado o seu parentesco com o Pe. Paiva, seria oportuno descartar
suas possíveis origens cristãs-novas. Isto é um considerável equívoco, visto
que muitos padres e religiosos tinham ascendência cristã-nova próxima. Tais
questões são amplamente discutidas por diversos autores.
- Pela
assinatura, deduz-se que João Ramalho
era alfabetizado.
As
razões pelas quais João Ramalho teria vindo ao Brasil, abandonando a sua
esposa, são misteriosas. É interessante sua origem no interior de Portugal, o
que pressupõe que o mesmo não fora criado no litoral, em contato próximo com as
naus portuguesas (suposição minha).
No
intuito de investigar algum fato, no sítio da Torre do Tombo, fiz buscas, com os termos “Vouzela”
combinado, de forma intercalada, com “Maldonado”, “Ramalho”, “Afonso” e “Paiva”.
Os resultados encontrados na localidade de Vouzela, que me chamaram a atenção,
foram:
- 1476:
Perdão concedido por Afonso V a João
Afonso, morador em Vouzela, quanto a pena de degredo, em razão de querela e
malefícios causados a Aires Pires, ferreiro;
- 1487:
Privilégio a um “João Ramalho” (não
vi informação de localidade, e não há detalhes);
- 1490:
Nomeação de Gonçalo Annes Ramalho
como tabelião em Gestaço, e “perdão” (próximo a Lamego);
- 1496:
Ofício de “enqueredor” concedido a Álvaro
de Paiva, escudeiro, morador em Vouzela. Em outro documento, do mesmo ano,
foi dada confirmação do ofício de Tabelião do Público e Judicial, no julgado de
Lafões;
- 1496: Lopo Afonso, morador de Vouzela,
recebeu confirmação do ofício de tabelião do público e judicial “nesse
concelho”;
- 1497: Estevão de Paiva, escudeiro, morador de
Vouzela, foi nomeado tabelião do público e judicial naquela vila e concelho,
substituindo Pero Annes, que faleceu;
- 1498: Maria Afonso, natural de Vouzela,
moradora nas Eiras, recebeu carta de perdão, visto que fora presa na cadeia e
prisão da vila de Lafões, em razão de acusações de que era manceba de um
clérigo de missa e abade de Santa Cruz, bispado de Viseu, chamado Balthazar de
Siqueira;
- 1499:
Instrumento assinado por Álvaro de
Paiva, tabelião, apresentando Estevão de Paiva, escudeiro, morador em
Vouzela, para lhe ser dado o cargo de distribuidor dos tabeliães do auto
judicial no julgado de Lafões;
- 1499: Lopo Afonso, escudeiro do Rei, morador
em Vouzela, tem mercê do ofício de tabelião do público e judicial no concelho
de Lafões, “assim como foi Rodrigo Annes, que o dito ofício tinha e dele foi
privado por Brás Afonso, ouvidor
nesses concelhos, porque Rodrigo Annes havia 5 ou 6 anos que não servia;
- 1500: Álvaro de Paiva, escudeiro e morador de
Vouzela, é nomeado por três anos escrivão da câmara do concelho;
- 1503: Eitor (sic) Afonso, morador em Vouzela, obtêm mercê do ofício de escrivão das
sisas do Concelho de Mafães;
- 1512: Henrique Afonso, morador em Vouzela,
recebeu privilégio de Espingardeiro em forma, por vaga de Antão Pires,
ferreiro;
- 1513: Heitor Afonso, morador em Vouzela, do
concelho de Lafões, nomeado escrivão dos direitos reais, em virtude de Estevão
de Paiva, anterior titular do cargo, o não servir por muitos anos, porque
fora para a Ilha da Madeira;
- 1517: Pedro Afonso, morador na vila de
Vouzela, do concelho de Lafões, é nomeado porteiro das sisas deste concelho;
É
interessante observar a existência de alguns “Afonsos” e “Paivas” em cargos de
tabeliães e escrivães, em Vouzela, localidade de origem de João Ramalho, e,
possivelmente, relacionada também ao Pe. Manuel de Paiva. Certamente, os que
estão citados acima, são parentes de João Ramalho e/ou do Pe. Paiva. Não
sabemos se estes “Afonsos” são apenas sobrenomes patronímicos ou possuem
relações entre si.
Tais
informações, apresentam apenas breves indícios sobre a origem de João Ramalho
em Vouzela. Estas informações de Vouzela, dispostas cronologicamente, tem por
objetivo incentivar pesquisadores, em especial, aqueles com acesso a Torre do
Tombo e conhecimentos de paleografia, para tentar decifrar uma possível teia de
parentescos entre esses Paivas e Afonsos, de onde pode surgir algum liame e
pista sobre João Ramalho e o Pe. Paiva.
FONTES:
Genealogia Paulistana. Luiz Gonzaga da Silva Leme
(1852-1919). Vol. IX – Pág. 65 a 107.
Adenda Geral (Volumes 1 e 2). Disponível em: http://www.arvore.net.br/Paulistana/Adenda_1.htm
Instituto Camões – Língua – 4 – Dicionário de
Tradutores e Intérpretes de Língua Portuguesa – João Ramalho. Artigo em: http://cvc.instituto-camoes.pt/olingua/04/lingua06.html
Bartira e
João Ramalho nas Cartas Jesuíticas. Projeto Compartilhar. Cartas publicadas in: Leite, Serafim, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, Ed
4º Centenário, Tipografia Atlântica, Coimbra, 1956. Disponível em: http://www.projetocompartilhar.org/bartiraejoaoramalho.htm
Bogaciovas, Marcelo Meira Amaral. Cristãos-Novos em São Paulo (Séculos XVI -
XIX): assimilação e nobilitação – São Paulo: ASBRAP, 2015. 480 p. ISBN
978-85-918719-2-6.
Torre do Tombo (PT). Link para pesquisa:
http://antt.dglab.gov.pt/pesquisar-na-torre-do-tombo/pesquisar-no-digitarq/